28.6.11

Sua respiração. Agora.

Você se dá conta que está respirando manualmente, expirando o ar aquecido que você sente atrás do céu da sua boca.

Você se dá conta que cada vez que você engole escuta um pequeno ruído em seus ouvidos. O ar entra mais frio agora e você respira um pouco mais profundamente.

Você percebe seu nariz constantemente nas bordas inferiores de sua visão periférica. Move a cabeça para confirmar.

Você se dá conta que sua língua é incapaz de encontrar um lugar confortável dentro de sua boca. Engole de novo. Escuta o ruído. Abre um vazio na boca e deita a língua na saliva do fundo.

Você se dá conta que vive o tempo todo no piloto automático e não nota quando reage ao invés de pensar. Pare e reflita antes de falar outra merda preconceituosa sobre qualquer coisa.

Sua respiração. Agora.

19.6.11

"Quatro pernas bom, duas pernas ruim"

O que é o preconceito senão a pretensa cura para a própria baixa auto-estima? Diminui-se a importância do outro para que, em proporção, possa parecer maior, mais forte, mais privilegiado. Demoniza-se o diferente para que não haja pena em negar-lhes direitos, em solapar-lhes a liberdade. Compensam a própria impotência em se equiparar com os avatares que sua mente classifica como superiores através da subjugação do alheio, da criação e da manutenção de classes, de classificações, de ordenação e de prioridade. O preconceito contra mulheres, homoafetivos (se bem que Davi e Jônatas eram bem mais que amigos, a despeito dos malabarismos semânticos que tem que fazer para abafarem o caso. Leiam 2 Samuel 1:26), escravos (consequentemente no caso ocidental, historicamente extendido aos negros), todos eles encontram respaldo na Bíblia, cuja matriz é escandalosamente patriarcal, misógina e impositora. Desde seus rabiscos iniciais, inventaram regras cuja única pretensa qualidade é ter convenientemente sobrevivido ao tempo. Se foi inspirada, como alguns dizem, a musa dessa paródia de sabedoria é o medo.

Medo de não ser aceito, de não ser bom o bastante, perfeito o bastante. Medo de ser confrontado, daí doutrinam crianças, pois estas não tem ainda o bom-senso treinado para saber distinguir o certo do errado, para que possam espalhar a semente e sua corrente não seja esquecida. E repetem seu mantra "quatro pernas bom, duas pernas ruim", certo que suas vozes são um coro numeroso, balidas em uníssono. Nas palavras do Maldito: "Criou-se uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina."

16.6.11

Desprazer, irritação e antipatia não define

"Vamos admitir até que a mulher tenha sido violentada, que foi vítima... É muito difícil uma violência sem o consentimento da mulher, é difícil", comenta. O bispo ajeita os cabelos e o crucifixo. "Já vi muitos casos que não posso citar aqui. Tenho 52 anos de padre... Há os casos em que não é bem violência... [A mulher diz] 'Não queria, não queria, mas aconteceu...'", diz. "Então sabe o que eu fazia?" Nesse momento, o bispo pega a tampa da caneta da repórter e mostra como conversava com mulheres. "Eu falava: bota aqui", pedindo, em seguida, para a repórter encaixar o cilindro da caneta no orifício da tampa. O bispo começa a mexer a mão, evitando o encaixe. "Entendeu, né? Tem casos assim., do 'ah, não queria, não queria, mas acabei deixando'. O BO é para não facilitar o aborto", diz.

O bispo continua o raciocínio. "A mulher fala ao médico que foi violentada. Às vezes nem está grávida. Sem exame prévio, sem constatação de estupro, o aborto é liberado", declara, ajeitando o cabelo e o crucifixo.

Luiz Gonzaga Bergonzini, bispo de Guarulhos.


Uma das porras mais nojentas que pude ler recentemente. Ele fala isso do alto de seu "privilégio" masculino e de sua autoridade eclesiástica, da distância de mundos que separa aquilo que ele entende como vida daquilo que é a vida real. Tem que ser um canalha sem limites e merecedor de punição máxima quem estupra, mas tem que padecer de um cinismo sem tamanho dizer, fatalmente acreditar, e mais ainda seguir passivamente um posicionamento desumano como esse.

Um ser desses que não procria nem acasala, só entende de um mundo onde só homens detém o poder e cabe às mulheres apenas o papel de uma unidade reprodutora, é capaz de dizer um impropério desse quilate sem nem ao menos se envergonhar da comparação estúpida. Mas, como disse a Paula, desse tipo de gentinha, oriundos da mesma gamela que os bolsonaros e demais conservadores, espera-se isso mesmo. Surpresa mesmo é um discurso religioso que não mascare ódio aberto com uma carranca de amor irrestrito.

11.6.11

A base da pirâmide

Não sei se já aconteceu e eu não assisti, mas como dito pelo Roney Belhassof pelo twitter, alguma emissora brasileira teria coragem de fazer um teste como esse em seu horário nobre?

Existe um ponto (geralmente de ebulição) onde a liberdade de comunicação da mídia é uma liberdade concedida pela parcela mais conservadora da audiência. E essa liberdade concedida é diretamente ligada à opinião masculina predominante, uma vez que o beijo gay feminino gera menos asco à opinião pública (somado ao fato que é uma fantasia bastante comum no imaginário da maioria dos homens) que o beijo gay masculino, como pode ser visto no vídeo. Ou seja: a homofobia é um tijolo secundário da pirâmide dos preconceitos sustentada pela base monolítica do machismo.

Interessante constatar que ambos os movimentos, pró-homoafetivo e feminista, são percebidos de forma diferente hoje. O primeiro é muito mais aceito por uma parcela mais esclarecida da população que o segundo, que é vilipendiado dos muito ricos aos muito pobres, uma vez que é um traço sedimentar muito mais antigo que o próprio dinheiro. Na verdade é mais antigo que nossa civilização, uma vez que compartilhamos ascendência com símios de sociedade extremamente patriarcais, com registro de dominação e violência contra suas fêmeas, outros machos e o que quer que entre em seu território. A dominação masculina sobre a figura feminina une todos os estratos de uma sociedade com uma cola mais firme que qualquer modelo econômico ou polítco já criado e extremamente difícil de se dissolver.

5.6.11

As bolhas no meu sangue


"O nitrogênio residual é o nitrogênio remanescente no corpo após um mergulho, cujo tempo de demora para ser eliminado depende do tempo de mergulho e da profundidade atingida. (...) Caso a eliminação do nitrogênio residual seja deficiente (...) pode ocorrer a geração de bolhas de nitrogênio que não conseguem ser eliminadas do corpo humano, ficando retidas em tecidos ou na circulação sanguínea. Esta ocorrência é chamada de doença descompressiva." — Wikipedia.


Quando passo pelo aquário que decora o hall de um dos prédios da faculdade onde dou aula, sempre paro um minuto para olhar os peixinhos levando sua vida encaixotada. Eles, assim como nós, estão sempre alheios a um detalhe que só nos damos conta raramente: ambos, eu e os peixinhos, estamos mergulhados em um fluido, ele no líquido e eu no gasoso. E nem nos damos conta disso, a não ser nesses momentos reflexivos.

Peixes não costumam se aventurar muito do lado de fora de seu ambiente (alguns, sorte nossa, desconhecem essa regra...), mas nós humanos desenvolvemos um sem número de técnicas, ciências, equipamentos, máquinas e veículos que nos fazem ir lá onde os peixes vivem, mesmo nas profundidades mais abissais junto de seus parentes mais bizarros. O problema de ir tão fundo (e para humanos, qualquer 10m já configura uma atmosfera extra de pressão sobre nossos frágeis corpos) nem é vencer a profundidade, mas voltar dela.

Não sei quanto falta. Talvez nunca chegue a respirar ar limpo e puro de novo. Mas a pressão incômoda das tradições, da religião, da misoginia, principalmente do cáustico e silencioso machismo, talvez a substância mais resiliente da tabela periódica dos preconceitos, vai ficando cada vez mais para baixo. Já consigo ver o bruxulear da luz clara do sol atravessando a ondulante linha d'água. Tenho algumas bolhas no sangue, mas vão ser reabsorvidas ao longo da subida. Se ainda estou consciente que ainda estou imerso no frio oceano cultural que fui mergulhado quando criança, é com orgulho que vejo que estou hoje mais perto da superfície que estava ontem.