17.12.07

Pedofilia e Igreja Católica

Apesar de vivermos em um país com alto índice de criminalidade em todas as camadas e setores sociais, reparo que mantemos sempre uma passividade incoerente com a revolta e a angústia que certamente acomete a todos os indivíduos cujo sangue não está estagnado nas veias. Sintoma agravado pela sensação de impunidade que as vantagens que o sistema penal possibilita a quem sabe como explorá-lo. E essa morosidade bovina não condiz com a vertiginosa cadeia de notícias que estala em nossa face a cada vez que ligamos a TV ou lemos um jornal matutino. Talvez por isso mesmo, não temos mais tempo para nos emocionar, dada a cadência de jabs de direita que levamos à cada assalto que disfarça o bizarro, sempre alheio, que nos entretém entre uma novela e outra.

Mesmo imerso nesse colóide viscoso (do qual a publicação infracitada certamente faz parte), não perdi a capacidade de me chocar, ainda bem. A Revista Superinteressante de dezembro trás na capa uma matéria que promete tumultuar as caixas de correio da redação para janeiro. "Sexo na Igreja", berra em letras garrafais, subentendendo que o delicado assunto pedofilia virá a tona. E dessa vez pegaram pesado. Fiquei perplexo com os casos de abusos de menores apurados pela reportagem dentro da igreja católica, alguns inéditos (pelo menos pra mim) e de uma frieza que me deixou até zonzo de repugnância.

É claro que tais crimes infelizmente não são novidade, mas o que leva homens religiosos (como se isso significasse algo...) a integrar a classe mais pérfida e digna de extermínio sumário que habita esse planeta? Algumas respostas empíricas, algumas tão bitoladas quanto estúpidas, no fórum da revista.

Vou transcrever com todos os grifos originais da matéria o primeiro parágrafo, que corresponde ao diário do padre Tarcísio Tadeu Sprícigo, condenado a 15 anos de prisão por abusos sexuais contra crianças.

"Idade: 7, 8, 9, 10. Sexo: masculino. Condição social: pobre. Condições familiares: de preferência, um filho sem pai, sozinho — ou com uma irmã. Onde procurar: nas ruas, escolas, famílias. Como fisgar: aulas de violão, coral, coroinha. Importantíssimo: prender a família do garoto. Possibilidades: garoto carinhoso, carente de pai. Sem moralismo. Atitudes minhas: ver do que o garoto gosta e atendê-lo em cobrança à sua entrega a mim. Como me apresentar: sempre seguro, sério, dominador, pai."

Não se trata de alguém cujas punções sexuais reprimidas eclodem em um impulso lascivo, comum a qualquer animal sob tais circunstâncias de celibato forçado. Trata-se de alguém que premedita a agressão e que sabe muito bem o que está fazendo, como comprova o diário onde descrevia o mudus operandi de cada um de seus ataques. Quando acusado pela primeira vez em 2001 na cidadezinha de Agudos por abusar de um menor de 9 anos, a medida tomada pela diocese responsável pela paróquia foi a de simplesmente transferir o pedófilo para outra cidade, onde ele pôde tranqüilamente repetir seu vício carnal e abjeto em mais duas crianças. Detalhes aqui.

Para não dizerem que se trata de preconceito contra um grupo religioso, dados de um estudo chamado John Jay Study que desde 1950 mapeia e cataloga as acusações feitas contra padres que abusaram de menores de 18 anos. Os números mostram que os casos de pedofilia dentro da igreja são de ordem tal que superam a incidência na sociedade secular. No mínimo quatro vezes mais crianças são estupradas ou levadas a ter relações sexuais com adultos dentro de uma igreja católica do que fora dela!

"Só nos EUA, único lugar com estatísticas concretas sobre padres que cometeram abusos sexuais [com menores], 4.392 sacerdotes católicos foram denunciados por esse tipo de crime entre 1950 e 2002. Isso dá 4% do total de pessoas que exerceram o sacerdócio no país nesse período. Um número alto, ainda mais tendo-se em mente que menos de 1% da população pode ser classificada como pedófila."

13.12.07

Pecado Capital

Está nas bancas a edição 474 da revista Carta Capital (12 de dezembro) com a reportagem falando sobre os recém lançados livros escritos por ateus que cruzam sabres contra a religião, perguntando logo na capa se "deus existe?". O texto de Phydia de Athayde e Antonio Luiz M. C. da Costa vale a curiosidade de ver como uma revista político-econômica dialoga com um tema desse tipo, mas não sem uma ressalva requentada.

A sensação primária é de que o posicionamento imparcial típico do modo jornalístico de escrever dá às matérias um ar meio agnóstico, já que não se posiciona sobre a pergunta da capa. Ambos vão tecendo o ponto de vista principalmente católico, já que em sua mais recente encíclica o papa Joseph Ratzinger se dá ao incômodo de traçar umas poucas linhas contra o ateísmo, e expõe o ponto de vista ateu e seus questionamentos sobre a real utilidade da religião no mundo moderno. O que me chamou mais a atenção é um trecho da reportagem do Antônio onde ele diz que

"Pior ainda é que a discussão parece ignorar o debate filosófico do século XIX em diante para retomar a discussão praticamente no ponto em que estava em meados do século XVIII (...). O ateu Denis Diderot e seus colegas enciclopedistas (...) do século XVIII ficariam surpresos ao constatar como os propagandistas do ateísmo como Richard Dawkins e Christopher Hitchens conseguem causar impacto sem acrescentar nada fundamentalmente novo à polêmica - e sem parecer ter mais do que um conhecimento superficial desse período."

Aparentemente o tom final desse trecho deu a entender que criticar a religião com base nas observações práticas das ações e de sua influência no mundo moderno sem voltar os olhos para as antigas bases filosóficas do século retrasado seria um erro. É claro que o bom argumento se faz com racionalismo e devidamente embasado em provas e fatos. Mas não me parece justo desmerecer uma opinião não-preconceituosa, já que nas obras dos dois autores citados os argumentos contra o jugo eclesiástico são firmemente calcados em fatos reais, como a posição contra do Vaticano ao uso de preservativos ou a forma como os muçulmanos radicais tratam suas mulheres, entre outros crimes. São fatos que podem facilmente ser captados na grande mídia e que dizem muito sobre as intenções ou o bom senso de quem as defende. Quanto ao não acrescentar algo de novo ao debate, me pergunto se há realmente algo de novo que já não tenha sido sobejamente discutido, provado e deixado às claras por séculos de contenda racional. Mais evidências sobre agressões estúpidas movidas pela fé? Isso já temos em quantidade...

Sobre esse quase recém-promovida falácia "sabe com quem você DEVERIA estar falando?", lembrei-me de um artigo brilhante que li no blog Godless Lliberator, onde é perguntado sobre o que um ateu precisa saber para estar apto a criticar a religião. Pela visão dos religiosos, seria preciso um ateu formado com mérito em teologia, segundo Elizandro Max, dono do blog, que diz ainda

E adivinhem só: essa criatura existe, chame-se Edmund Standing e escreveu um dos artigos mais incisivos que li ultimamente. Ele confirma tudo aquilo que, sem estudar teologia, eu e a maioria dos ateus já desconfiávamos: a teologia é uma não-saber sobre algo que não existe, e é falaciosa a idéia de que a fé é uma coisa por demais profunda, que nunca pode ser compreendida pelos ateus. Uma resposta à altura para qualquer um que diga que os ateus não podem criticar a religião.

Leia aqui o artigo original de Edmund Standing, graduado em Teologia & Estudos Religiosos e mestre em Teoria Cultural e Crítica.

4.12.07

Boas e más razões para crer

Trecho excelente do livro O Capelão do Diabo, de Richard Dawkins, sobejamente citado e titulado por aqui no blog. Nele, o autor escreve uma carta para sua filha de dez anos, alertando-a contra o que ele chama de as "três más razões para acreditar em algo": tradição, autoridade e revelação.

Espero poder ser de alguma ajuda para pais e mães atéias, que se preocupam com a formação moral das crias, e que passam por situação onde a educação dos filhos sofre interferências externas de doutrinação religiosa, às vezes dentro da própria casa. Posso não ser pai (e provavelmente nem venha a ser...), mas certamente compreendo um pouco o tema por ter nascido dentro de um lar evangélico e ter sido criado dentro dos dogmas congregacionais, que é algo como os batistas. Posso assegurar que livrar-se desse fardo mais tarde é bem complicado. Mas isso é assunto para uma outra postagem.

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Querida Juliet,

Agora que você fez dez anos, quero lhe escrever sobre algo que é muito importante para mim. Você já se perguntou sobre como sabemos as coisas que sabemos? Como sabemos, por exemplo, que as estrelas, que parecem pequenos pontos no céu, são na verdade grandes bolas de fogo como o Sol e ficam muito longe? E como sabemos que a Terra é uma bola menor, girando ao redor de uma dessas estrelas, o Sol?

A resposta para essas perguntas é provas. Às vezes prova significa realmente ver (ou ouvir, ou sentir, cheirar...) que algo é verdade. Astronautas viajaram longe o suficiente da Terra para ver com seus próprios olhos que ela é redonda. Às vezes nossos olhos precisam de ajuda. A Estrela Dalva parece uma sutil cintilação no céu, mas com um telescópio você pode ver que ela é uma linda bola - o planeta que chamamos de Vênus. Uma coisa que você aprende diretamente vendo (ou ouvindo, ou cheirando...) é chamada de observação.

Freqüentemente, a prova não é só uma observação por si só, mas há sempre observações em sua base. Se aconteceu um assassinato, é comum ninguém (menos o assassino e a pessoa morta!) ter visto o que aconteceu. Mas os detetives juntam diversas observações que podem apontar na direção de um suspeito. Se as impressões digitais de uma pessoa coincidirem com as encontradas num punhal, isso é uma prova de que ela tocou nele. Isso não prova que ela cometeu o assassinato, mas pode ser uma informação útil, junto com outras provas. Às vezes um detetive consegue pensar sobre várias observações e então de repente perceber que todas se encaixam e fazem sentido se fulano de tal cometeu o crime.

Os cientistas - os especialistas em descobrir o que é verdade sobre o mundo e o universo - freqüentemente trabalham como detetives. Eles dão um palpite (chamado de hipótese) sobre o que talvez seja verdade. Depois dizem para si mesmos: Se isso realmente for verdade, devemos observar tal coisa. Isso é chamado de previsão. Por exemplo, se o mundo realmente for redondo, podemos prever que um viajante que caminhar continuamente numa mesma direção acabará no ponto de onde partiu. Quando um médico diz que você está com sarampo, ele não olhou para você e viu sarampo. A sua primeira observação lhe fornece a hipótese de que você talvez tenha sarampo. Então ele diz para si mesmo: se ela realmente está com sarampo, devo encontrar... E ele então consulta sua lista de previsões e testa-as usando seus olhos (você está com pintas?), mãos (sua testa está quente?) e ouvidos (seu peito está com um chiado?). Só então ele toma a decisão e diz: Meu diagnóstico é que essa criança está com sarampo. Às vezes, os médicos precisam fazer outros testes, como exames de sangue ou raio-X, que ajudam seus olhos, mãos e ouvidos a fazer observações.

O modo como os cientistas usam provas para aprender sobre o mundo é muito mais engenhoso e complicado do que consigo dizer numa breve carta. Mas agora quero deixar de lado as provas, que são uma boa razão para crer em algo, e alerta-la sobre três más razões para acreditar em algo. Elas se chamam tradição, autoridade e revelação.

Primeiro, a tradição. Alguns meses atrás, fui à televisão para ter uma conversa com cerca de cinqüenta crianças. Essas crianças foram convidadas por terem sido criadas segundo diferentes religiões: algumas como cristãs, outras judias, muçulmanas, hindus ou sikhs. Um homem com um microfone ia de criança em criança, perguntando no que acreditavam. O que elas responderam mostra exatamente o que quero dizer com tradição. Suas crenças não tinham nenhuma relação com provas. Elas simplesmente papagaiavam as crenças de seus pais e avós que, por sua vez, também não eram baseadas em provas. Elas diziam coisas como: Nós, hindus, acreditamos em tal e tal; Nós, muçulmanos, acreditamos nisso e naquilo; Nós, cristãos, acreditamos numa outra coisa.

Como todas acreditavam em coisas diferentes, nem todas poderiam estar certas. O homem com o microfone parecia achar que isso não era um problema, e nem tentou fazê-las discutir suas diferenças entre si. Mas não é isso que quero enfatizar no momento. Eu simplesmente quero analisar de onde vieram as crenças. Vieram da tradição. Tradição significa crenças passadas do avô para o pai, deste para o filho, e assim por diante. Ou por meio de livros passados através das gerações ao longo dos séculos. Crenças populares freqüentemente começam de quase nada; talvez alguém simplesmente as invente, como as histórias sobre Thor e Zeus. Mas depois de terem sido transmitidas por alguns séculos, o simples fato de serem tão antigas as faz parecer especiais. As pessoas acreditam em coisas simplesmente porque outras pessoas acreditaram nessas mesmas coisas ao longo dos séculos. Isso é tradição.

O problema com a tradição é que, independentemente de há quanto tempo a história tenha sido inventada, ela continua exatamente tão verdadeira ou falsa quanto a história original. Se você inventar uma história que não seja verdadeira, transmiti-la através de vários séculos não vai torná-la verdadeira!

A maioria das pessoas na Inglaterra foi batizada pela Igreja anglicana, mas esse é apenas um entre muitos ramos da religião cristã. Há outras divisões, como a ortodoxa russa, a católica romana e as metodistas. Todas acreditam em coisas diferentes. A religião judaica e a muçulmana são um pouco diferentes; e há ainda diferentes tipos de judeus e muçulmanos. Pessoas que acreditam em coisas um pouco diferentes umas das outras vão à guerra por causa das discordâncias. Então você talvez imagine que eles têm boas razões - provas - para acreditar naquilo que acreditam. Mas, na realidade, suas diferentes crenças são inteiramente decorrentes de tradições.

Vamos falar sobre uma tradição em particular. Católicos romanos acreditam que Maria, a mãe de Jesus, era tão especial que ela não morreu, mas acendeu ao Céu. Outras tradições cristãs discordam, e dizem que Maria morreu como qualquer pessoa. Outras religiões não falam muito nela e, de modo diferente dos católicos romanos, não a chamam de Rainha do Céu. A tradição segundo a qual o corpo e Maria foi levado ao Céu não é muito antiga. A Bíblia não diz nada sobre como ou quando ela nasceu; aliás, a pobre mulher mal é mencionada na Bíblia. A crença de que seu corpo foi levado ao Céu não foi inventada até cerca de seis séculos após a época de Jesus. No início, só foi inventada, da mesma forma que qualquer história, como Branca de Neve. Mas, no transcorrer dos séculos, ela se tornou uma tradição e as pessoas começaram a levá-la a sério simplesmente porque a história havia sido transmitida ao longo de tantas gerações. Quanto mais velha a tradição se tornava, mais as pessoas a levavam a sério. Ela foi por fim escrita como uma crença católica romana oficial muito recentemente, em 1950, quando eu tinha a idade que você tem hoje. Mas a história não era mais verdadeira em 1950 do que quando foi inventada, seiscentos anos após a morte de Maria.

Vou voltar à tradição no fim de minha carta, e olhá-la de outro modo. Mas antes preciso tratar das outras duas más razões para crer em alguma coisa: autoridade e revelação.

Autoridade enquanto razão para crer em algo significa acreditar pois alguém importante ordenou que você acreditasse. Na Igreja católica romana, o papa é a pessoa mais importante, e as pessoas acreditam que ele deve estar certo só porque ele é o papa. Num dos ramos da religião muçulmana, as pessoas importantes são velhos barbados chamados de aiatolás. Muitos muçulmanos se dispõem a cometer assassinatos simplesmente porque aiatolás de um país distante deram essa ordem.

Quando digo que só em 1950 os católicos romanos foram finalmente informados que tinham que acreditar que o corpo de Maria havia subido para o Céu, quero dizer que em 1950 o papa disse que isso era verdade, e então tinha que ser verdade! É claro que algumas coisas que o papa disse ao longo de sua vida devem ser verdade e outras não. Não há nenhuma boa razão para você acreditar em tudo que ele diz mais do que você haveria de acreditar nas coisas que muitas outras pessoas dizem, só porque ele é o papa. O papa atual ordenou às pessoas que não controlasse o número de filhos que vão ter. Se sua autoridade for seguida com a obediência que ele deseja, os resultados poderão ser uma terrível escassez de alimentos, doenças e guerras, causas por superpopulação.

É claro que, mesmo na ciência, às vezes nós mesmos não vemos as provas e temos de acreditar no que foi dito por outra pessoa. Eu não vi, com os meus próprios olhos, que a luz viaja à velocidade de 300 mil quilômetros por segundo. Mas acredito em livros que me dizem qual a velocidade da luz. Isso parece autoridade. Mas na realidade é muito melhor que autoridade, porque as pessoas que escreveram o livro viram as provas, e qualquer um de nós pode examinar as provas com atenção no momento que quiser. Isso é muito confortante. Mas nem mesmo os padres afirmam que há provas para a história de que o corpo de Maria subiu para o Céu.

A terceira má razão para acreditar em algo é revelação. Se você tivesse perguntado ao papa, em 1950, como ele sabia que o corpo de Maria tinha subido ao Céu, ele provavelmente teria dito que isso lhe fora revelado. Ele se fechou num quarto e rezou, pedindo orientação. Sozinho, ele pensou e pensou, e na sua intimidade teve mais e mais certeza de suas idéias. Quando pessoas religiosas têm uma simples sensação de que algo deve ser verdade, mesmo que não haja provas de que o seja, eles chamam sua sensação de revelação. Não só os papas afirmam ter revelações. Isso também acontece com muitas pessoas religiosas. É uma de suas principais razões para acreditar naquilo que acreditam. Mas isso é bom ou ruim?

Suponha que eu lhe dissesse que seu cachorro está morto. Você provavelmente ficaria muito triste, e talvez dissesse: Você tem certeza? Como você sabe? Como aconteceu? Suponha então que eu respondesse: Na verdade, eu não sei se Pepe está morto. Eu não tenho provas. Só tenho uma sensação esquisita, bem dentro de mim, de que ele está morto. Você ficaria muito zangada comigo por tê-la assustado, porque você sabe que uma sensação por si só não é uma boa razão para acreditar que um cachorro está morto. Você precisa de provas. Todos temos sensações e pressentimentos de tempos em tempos, e descobrimos que às vezes estavam certos, às vezes não. De qualquer forma, pessoas diferentes podem ter sensações opostas, então como decidir quem teve a intuição correta? O único jeito de ter certeza de que um cachorro está morto é vê-lo morto, ou ouvir que seu coração parou de bater, ou obter essa informação de uma pessoa que viu ou ouviu alguma prova de que ele está morto.

As pessoas às vezes dizem que devemos acreditar em sensações íntimas, senão você nunca teria certeza de coisas como minha esposa me ama. Mas esse é um argumento ruim. Pode haver muitas provas de que alguém ama você. Durante todo o dia em que você está com alguém que a ama, você vê e ouve pequenas provas, e elas se somam. Não é somente ma sensação interior, como a sensação que os padres chamam de revelação. Há outras coisas para apoiar a intuição: olhares, um tom carinhoso de voz, pequenos favores e gentilezas; tudo isso serve de prova. Certas pessoas têm forte sensação de que alguém as ama sem que isso esteja baseado em provas, e então é provável que estejam completamente enganadas. Há pessoas com uma forte intuição de que um astro do cinema está apaixonado por elas, mas na realidade o astro de cinema nem sequer as encontrou. Pessoas assim são doentes da cabeça. Sensações íntimas ou intuições precisam ser apoiadas por provas, senão você simplesmente não pode confiar nelas.

As intuições são valiosas na ciência também, mas só para lhe dar idéias que você então testa, procurando provas. Um cientista pode ter um pressentimento sobre uma idéia que ele sente estar correta. Por si só, isso não é uma boa razão para acreditar nela. Mas pode ser uma razão para passar algum tempo fazendo experimentos, ou à busca de provas. Cientistas usam a intuição o tempo todo para ter idéias. Mas elas não valem nada até que sejam apoiadas por provas.

Eu prometi que voltaria à tradição, para examiná-la de outro modo. Quero explicar o que a tradição é tão importante para nós. Todos os animais são construídos (pelo processo chamado de evolução) para sobreviver no local em que seus semelhantes vivem. Leões são construídos para sobreviver nas planícies da África. O lagostim é construído para sobreviver na água doce, enquanto as lagosta são adaptadas para a vida na água salgada. As pessoas também são animais, e somos construído nos para viver bem no mundo cheio de... outras pessoas. A maioria de nós não caça para obter comida, como as lagostas ou os leões; nós a compramos de pessoas que, por sua vez, a compram de outras pessoas. Nós "nadamos" num "mar de pessoas". Assim como um peixe precisa das brânquias para sobreviver na água, as pessoas precisam do cérebro que as torna capazes de se relacionarem umas com as outras. Assim como o mar está cheio de água salgada, o mar de pessoas está cheio de coisas difíceis de aprender. Como a linguagem.

Você fala inglês, mas sua amiga Ann-Kathrin fala alemão. Cada um de vocês falam a língua que lhes permite "nadar" no seu "mar de pessoas". A linguagem é transmitida por tradição. Não há outra alternativa. Na Inglaterra, Pepe é a dog. Na Alemanha, ele é ein Hund. Nenhuma dessas palavras é mais correta ou verdadeira do que a outra. As duas foram transmitidas ao longo do tempo, só isso. Para serem boas em "nadar no seu mar de pessoas", as crianças têm que aprender a língua de seu país, e muitas outras coisas sobre se o seu povo; e só quer dizer que elas precisam absorver, como papel mata-borrão, uma enorme quantidade de informações sobre tradições (lembre que essas informações são aquelas passadas dos avós para pais e deste para filhos). O cérebro da criança tem que absorver informações sobre tradições. Não é de se esperar que a criança consiga separar a informação boa e útil, como as palavras de uma língua, das informações ruins e tolas como acreditar em bruxas, demônios e virgens imortais.

É uma pena - mas não deixa de ser assim - que, por serem sugadoras da informação sobre tradições, as crianças possam acreditar em qualquer coisa que os adultos lhes digam. Não importa se seja falso ou verdadeiro, certo ou errado. Muito do que os adultos dizem é verdadeiro e baseado em provas, ou pelo menos sensato. Mas se parte do que é dito é falso, tolo ou até malvado, não há nada para impedir as crianças de acreditarem naquilo também. E quando as crianças crescerem o que farão? Bom, é claro que contarão as histórias para a próxima geração de crianças. Então, uma vez que uma idéia se torna uma crença arraigada - mesmo que seja completamente falsa e nunca tenha havido uma razão para acreditar nela -, pode durar para sempre.

Será isso o que aconteceu com as religiões? A crença de que há um Deus ou deuses, crença no Céu, crença em que Maria nunca morreu, que Jesus nunca possuiu um pai humano, que as rezas são respondidas, que vinho se torna sangue - nenhuma dessas crenças é apoiada por boas provas. E no entanto milhões de pessoas acreditam nelas. Talvez isso ocorra porque elas foram levadas a acreditar nessas coisas quando eram tão jovens que aceitavam qualquer coisa.

Milhões de pessoas acreditam em coisas bem diferentes, porque diferentes coisas lhes foram ensinadas quando eram crianças. Coisas diferentes são ditas para crianças muçulmanas e cristãs, e ambas crescem totalmente convencidas de que estão certas e as outras erradas. Mesmo entre cristãos, católicos romanos acreditam em coisas diferentes dos anglicanos ou de pessoas como os shakers [adeptos da igreja milênio] ou quacres, mórmons ou Holy Rolers, e todos estão plenamente convencidos de que estão certos e os outros errados. Acreditam em coisas diferentes exatamente pela mesma razão que você fala inglês e Ann-Kathrin fala alemão. Ambas as línguas são, em seu próprio país, a língua certa para se falar. Mas não pode ser verdade que religiões diferentes estão corretas em seus próprios países, pois religiões diferentes afirmam que coisas opostas são verdadeiras. Maria não pode estar viva na Irlanda do Sul (um país católico) e morta na Irlanda do Norte (que é protestante).

O que podemos fazer sobre tudo isso? Não é fácil para você fazer alguma coisa, porque você só tem dez anos. Mas você pode tentar o seguinte. Da próxima vez que alguém lhe disser algo que parecer importante, pense: Será que isso é o tipo de coisa que as pessoas sabem por causa de provas? Ou será o tipo de coisa em que as pessoas acreditam só por causa de tradição, autoridade ou revelação? E, da próxima vez que alguém lhe disser que uma coisa é verdade, por que não perguntar: que tipo de prova há para isso? E, se ela não puder lhe dar uma boa resposta, eu espero que você pense com muito carinho antes de acreditar em qualquer palavra daquilo que foi dito.

De seu querido papai
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