27.11.07

Deus, um Delírio

Quando era criança, minha mulher odiava a escola em que estudava e sonhava poder sair de lá. Tempos depois, quando tinha seus vinte e poucos anos, ela revelou sua infelicidade para os pais, e a mãe ficou horrorizada:“Mas, querida, por que você não nos contou?”. A resposta de Lalla é minha leitura do dia: “Mas eu não sabia que podia”.
Com essa anedota familiar Richard Dawkins, eminente zoólogo evolucionista e popular escritor de divulgação científica britânico, inaugura seu mais novo livro, The God Delusion (Deus, um Delírio na tradução em português). Ele descreve os malefícios que uma crença causa ao homem e como a religião alimenta a guerra, fomenta o fanatismo e doutrina as crianças. No trecho destacado acima ele fala diretamente àqueles que não estão certos de sua opção religiosa e que encaram a religião como um dogma tão imutável que não pode ser questionado. Ou que não sabem que pode ser questionado.

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03.12.2007 09h58

Atualizando o post. Quem se interessar pode baixar gratuitamente o prefácio da edição brasileira clicando aqui. O link aponta para o arquivo em PDF que está hospedado no site da Livraria Cultura. Boa leitura!

19.11.07

Argumentum ad baculum

Vejam só como essa gentinha pensa.


Encontrei esses dias aí pela internet duas imagens escaneadas desses folhetos que são sobejamente panfletados (leia-se confetizados) pelas ruas com motivos religiosos, mais especificadamente da Sociedade Bíblica Ebenézer, uma das centenas de denominações religiosas que poluem o já inchado sincretismo nacional. Como sempre me esquivo de receber qualquer coisa na rua, minhas chances de ter em mãos algo tão prenhe de manipulação textual de baixo calão são mínimas. Para facilitar a leitura, transcrevi o texto e o posto abaixo ipsum literis, cabendo ao autor do texto a responsabilidade pela sua publicação e distribuição nas ruas:

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Carta do Além

Imagine se o diabo resolvesse escrever uma carta para alguém aqui da Terra. Dessas pessoas folgadas, que não estão nem aí com Deus ou com a igreja. Creio que ela seria mais ou menos assim:

"Caro amigo":
Saudações infernais!
Estou tão ansioso por nosso encontro final que resolvi escrever-lh afim de manifestar minha paixão por você. Você é tão perverso, malvado e rancoroso!
A característica que mais admiro em você é esse seu desprezo por Deus. Noto que voce transgride todos os mandamentos da Bíblia.
Particularmente estou torcendo para que você adquira logo uma doença. Com sua vida promíscua, creio que isto não vai demorar.

Também torço para que você se arrebente quando dirigir bêbado. Isto o traria logo para meus braços, numa união eterna.
Outro dia, quando se livrou daquele chato que, com a Bíblia na mão, insistia que você mudasse de vida, nós fizemos a maior festa.
Para encerrar, espero que você firme. Fuja da igreja. Nunca ouça ou veja aqueles programas que falam do meu maior inimigo - Jesus.

Atenciosamente
Satanás

Esta carta é uma peça de ficção. Mas o seu conteúdo é verdadeiro. Se você não gostou do que nela está escrito, vai gostar menos ainda do inferno. Ainda há tempo de se arrepender de seus pecados e se entregar a Jesus.
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Um discurso tão carregado de falácias e argumentos vazios insustentáveis que me vi compelido a decupar os períodos e assinalar os mecanismos manipulatórios contidos no texto. Decerto não pude ser preciso o suficiente por se tratar de uma análise superficial e nem pude evitar derramar alguma jocosidade sobre o assunto. Se alguém se sentir de alguma forma agredido, não foi por mal(humor!).

Imagine se o diabo resolvesse escrever uma carta para alguém aqui da Terra. Dessas pessoas folgadas, que não estão nem aí com Deus ou com a igreja. Creio que ela seria mais ou menos assim: "Caro amigo": Saudações infernais! Estou tão ansioso por nosso encontro final que resolvi escrever-lhe afim de manifestar minha paixão por você.
Começamos mal...
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Você é tão perverso, malvado e rancoroso!
Apela para o argumentum ad hominem, com o agravante de ser baseado em preconeito não fundamentado, já que considera todos aqueles que não compartilham da mesma fé deles como perversos, malvados e rancorosos.
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A característica que mais admiro em você é esse seu desprezo por Deus.
Sinto muito, mas não dá pra desprezar o que não existe. Só posso desprezar mesmo a idéia de se inventar uma divindade para justificar os atos que o próprio povo que a inventa perpetra contra os seus.
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Noto que voce transgride todos os mandamentos da Bíblia.
E olha que eu nem me esforço pra isso...
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Particularmente estou torcendo para que você adquira logo uma doença.
Não basta apenas ameaçar, tem que rogar pragas como um xamã primitivo! Típico argumentum ad baculum, onde a força é elevada a categoria de argumento de convencimento.
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Com sua vida promíscua, creio que isto não vai demorar.
Repeteco do argumentum ad hominem.
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Também torço para que você se arrebente quando dirigir bêbado.
Repeteco do argumentum ad baculum. Gostaria apenas que esse pessoal se plagiasse menos e fosse mais criativo em seus "argumentos".
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Isto o traria logo para meus braços, numa união eterna.
Não obrigado. Além de lúcido, sou hetero.
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Outro dia, quando se livrou daquele chato que, com a Bíblia na mão,
Anos de treino. Uma cara fechada e uma mão espalmada são a defesa mais efetiva contra os chatos panfleteiros.
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insistia que você mudasse de vida,
Além de chato tem precognição também para (supor) saber como é minha vida?
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nós fizemos a maior festa. Para encerrar, espero que você permaneça firme.
Não tenha dúvidas disso, seu Capeta.
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Fuja da igreja.
A coisa mais sensata que um garoto de 14 anos poderia ter feito.
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Nunca ouça ou veja aqueles programas que falam do meu maior inimigo - Jesus.
A qualidade inerente deles já garante que meus olhos e ouvidos passem longe daquilo.
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Atenciosamente - Satanás
Esta carta é uma peça de ficção.
Nem precisava ter dito isso!
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Mas o seu conteúdo é verdadeiro. Se você não gostou do que nela está escrito, vai gostar menos ainda do inferno.
Argumentum ad baculum de novo. Ameaças, só conseguem argumentar com ameaças...
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Ainda há tempo de se arrepender de seus pecados e se entregar a Jesus.
Já disse que sou hetero. Favor não insistir, colega!
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14.11.07

Abóbora e ovos de chocolate na mesma gamela

Andando dia desses pela madruga do centrão carioca, dou de cara com vários desses cartazes colados pelas paredes da cidade.


Cortesia do Movimento Pela Valorização da Cultura, do Idioma e das Riquezas do Brasil (tenho certa antipatia por nomes que tentam explicar muita coisa, mas enfim...). A idéia básica poderia até me fazer dar o mindinho para o pessoal de lá quebrar, afinal, quem já trabalhou na Barra da Tijuca (alforreei-me de lá após quatro longos anos) sabe que é um lugar que para ser uma Miami só não falta o idioma.

Essas manifestações fortuitas na hora do orvalho me lembram sempre do pessoal dos diretórios acadêmicos da faculdade. Aliás, "comem na mesma gamela", já dizia minha finada vó Henriqueta. O DCE lá de onde estudei tinha um bandeirão enorme de Cuba em uma das paredes da saleta, bunker principal para distribuição de apitos e, mais recentemente, narizes de palhaço. Coisinhas de reacionários juvenis, assim como os estandartes, caras pintadas e gritos de ordem. Gente com saudade da ditadura, só pode. Só que esses cartazes antiamericanos, além do mau-gosto estético e da poluição visual que causa, são marcados também pela linguagem ignorante da dicotomização das opiniões, alheios ao fato de que a realidade é construída em tons de cinza. Do mesmo jeito que os religiosos e os partidários políticos extremistas (tanto canhotos quanto destros) enxergam o mundo, sob suas parelhas imaginárias que não lhes permitem o sadio hábito de perceber racionalmente.

À propósito, eu já disse que não gosto de Halloween? Nem de nenhuma dessas datas ritualísticas-comerciais que assolam o país, mas é gosto meu. Imagino o que professoras como a Tia Paula passam nessas épocas com seus queridinhos vestidos de vampirinho e bruxinhas. Já que citei a tal gamela como metáfora para duas ou mais coisas que se assemelham, a única diferença entre a sombria data americana e a Páscoa comemorada aqui são os doces, mas a dor de barriga por consumo em demasia de subprodutos culturais alienígenas é a mesma.