Marcelo Gleiser — Um Breve Manifesto
Estava outro dia esperando uma amiga minha no ponto de ônibus e, como já é de costume, dirigi-me a uma banca para comprar uma revista para matar o tempo. Há muito não consumo mais títulos como Superinteressante ou Galileu por estarem cada dia mais rarefeitas e voltadas para assuntos excessivamente pop. Menos ciência e mais curiosidades. Mas na revista científica da Editora Globo desse mês um texto do Marcelo Gleiser me chamou atenção. Nele ele discorre sobre como as pessoas errôneamente acham que a ciência é um anti-glamurizador do mundo, que solapa com suas perguntas e questionamentos a beleza que há nos mistérios da realidade.
Acho engraçado como a maioria de nós se escora em coisas que carecem de qualquer respaldo minimamente lúcido em prol de uma tradição sem razão de ser, ou apenas repetir aquilo que foi repetido para e pelas gerações que nos antecederam.
Nesse final de 2008, cabe aqui uma curta retrospectiva, ano em que me dediquei muito mais à causa laicista e ateísta, percebi que a sociedade está cansada dos velhos dogmas, das velhas formas cegas de ver o mundo. Mas ao invés de se libertarem desse amálgama de mal-gosto com estupidez, chafurdam-se ainda mais em temáticas trancedentais como OVNIs, espíritos e outras formas de misticismo. Não tenho, portanto, bons prognósticos para os próximas anos. Torçamos para que tudo melhore, mas os meus presságios se mostram cada vez menos otimistas.
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Ciência e espiritualidade: um breve manifesto
Na opinião popular, o título deste texto representa um paradoxo. Ciência e espiritualidade habitam mundos diferentes, que em geral entram em conflito ao se aproximarem. A primeira é vista como uma atividade exclusivamente racional, reducionista, materialista e fria, sem qualquer interesse por questões espirituais. Já a segunda, bem mais difícil de ser definida, representa uma busca pessoal, uma relação com uma realidade que transcende o imediato, que nos conecta com o que vai além do material. Por isso a espiritualidade é considerada a antítese da ciência.
Para piorar, a busca espiritual costuma adotar uma posição que não só é contrária ao materialismo científico, mas que o confronta. Ela passa a ser quase que uma "vingança" para quem está desiludido com um mundo cada vez mais explicável, destituído de mágica e poesia. O movimento romântico do início do século 19 foi uma resposta direta ao racionalismo extremo do século 18. O poeta John Keats acusou Isaac Newton de ter "desfiado o arco-íris", de ter roubado a sua beleza com suas explicações precisas sobre o comportamento da luz. Nada poderia ser menos verdadeiro.
Quem fecha os olhos para as descobertas da ciência moderna e se fia na ocorrência de fenômenos sobrenaturais, paranormais, astrológicos, quem acredita que duendes povoam florestas, quem jura que almas circulam pelo mundo dos vivos sem serem percebidas, faz o mesmo que o poeta: nega-se a apreciar a poesia e a beleza que a ciência nos revela, preferindo pensar como nossos antepassados. E sua credulidade é explorada por oportunistas.
Existe mágica de sobra no mundo que podemos ver com nossos olhos e com os instrumentos que inventamos para ampliar a nossa visão da realidade. Não é preciso se fiar numa realidade invisível e sobrenatural, cuja existência depende de relatos individuais e que é sujeita à fé. Quando queremos muito acreditar em algo, isso se torna mais real. O querer acreditar compromete nossa habilidade de decidir imparcialmente - ou quase - se uma asserção é ou não verdadeira.
Se meu pai está doente e a medicina moderna não pode fazer nada por ele, por que não levá-lo a um curandeiro, alguém com supostos poderes de exercer curas milagrosas e inexplicáveis? A morte assusta, foge ao nosso controle, rouba aqueles que amamos. É difícil aceitar a postura materialista de que ela é mesmo o fim, que essa faísca que anima a matéria e nos faz amar e chorar se esvai por completo num piscar de olhos. Nosso dilema é termos consciência de que temos os dias contados. Aceitar esse fato é tão difícil que fazemos de tudo para driblá-lo, criando mecanismos que vão além do que podemos provar. Talvez isso ajude muitos a aceitarem seus destinos. O triste é que os que estão convictos da existência dessa dimensão sobrenatural fechem os olhos para o que a ciência mostra.
Prefiro viver de olhos bem abertos e aceitar a pré-condição da vida, a não-vida. Ignorar o que a natureza nos mostra todos os dias é viver menos, é se apegar a contos de fadas para evitar o confronto com a nossa condição humana. Saber morrer é saber viver, é saber aceitar o quanto são preciosos esses breves momentos que temos para amar, chorar, apreciar a beleza do arco-íris, vibrar com um gol e ter medo de perder quem amamos. É na brevidade da vida que reside o seu segredo: saber viver sem medo de morrer. Isso não é nada fácil, e não acredito que tenha conquistado o meu próprio medo. Mas prefiro viver com ele a me iludir com algo que nunca saberei se está certo ou não.
Ninguém gosta da idéia de morrer ou de sofrer. Ninguém gosta de ver o sofrimento de tantos no mundo. Porém, se a alternativa é achar que tudo isso vai ser diferente no "além", que forças ocultas regem nossas vidas e podem ser controladas por meio de crenças místicas, ela me parece criar uma sociedade que não enfrenta os desafios que tem pela frente, escondendo-se nas promessas de um mundo inescrutável e inexistente.
Para mim, a mágica ocorre a cada momento em que estamos vivos, que podemos amar e sofrer, que podemos refletir sobre quem somos e sobre como podemos melhorar as nossas vidas e as dos que estão à nossa volta. Perceber essa mágica é abraçar a espiritualidade da ciência. Com ela aprendemos quem somos e como nos relacionamos com o mundo e com o Universo. Entre os caminhos que temos para enfrentar nossos desafios, não vejo outro que possa mostrar o quanto a vida é preciosa e rara, que celebre de forma mais clara a mágica da existência.
MARCELO GLEISER é astrofísico, professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos, e autor de cinco livros sobre ciência e conhecimento.
2 comentários:
Também existe beleza em entender o funcionamento das coisas. O conhecimento tem o seu romantismo...
P.s.: tive a sutil impressão que gostou do presente. rs. Fiquei feliz.
O que é pior são as pessoas que se beneficiam diretamente das descobertas científicas, mas continuam negando, ou ignorando o conforto proporcionado por elas.
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