Retratos de um Mundo Ideal
Ou: Da fina arte do copy/paste naquilo que presta...
Há uns dois meses que não sei o que é beber, não com aquela vontade sublime de voltar pra casa carregado ou postar o conteúdo do estômago no ralo mais próximo. Não, apenas sob a égide da confraternização entre amigos, quando se conta causos, contos e mentiras inócuas típicas do protocolo de boteco. Sinto falta do bate-papo sobre uma mesinha de aço meio enferrujada em um antro de ébrios sacanas e malandros da boa e velha Lapa carioca.
Sob esse signo da melancoolia [sic], lembrei desse texto que o Fabio do CBCC postou lá naquela augusta comuna orkutiana de amigos que de virtuais só tem a percepção alheia mais rasa, de um autor que eu gosto muito embora só tenha lido alguns ensaios e textos esparsos. Fiquem com Mencken, ele sabe das coisas.
"Que o álcool numa solução diluída em água, quando tomado pelo organismo humano, atua como depressor e não como estimulante, é hoje um clichê tão batido que até os fisiólogos mais avançados estão começando a tomar conhecimento dele. O leigo inteligente não recorre à garrafa quando tem compromissos importantes a resolver, sejam intelectuais ou manuais; ele deixa a primeira dose para depois do trabalho feito, quando deseja relaxar a tensão e reduzir a pressão de seu mau humor. O álcool, por assim dizer, nos desenreda. Ele levanta o toldo da sensação e nos torna menos sensíveis aos estímulos externos e, particularmente, àqueles que nos são desagradáveis. Ao pôr um freio em todas as qualidades que nos permitem tocar a vida e brilhar diante dos colegas — por exemplo, a combatividade, a agudeza, a diligência, a ambição –, o álcool liberta as qualidades que nos enternecem e fazem com que as pessoas gostem de nós: a afabilidade, a tolerância, a generosidade, o humor, a simpatia. Um homem com dois ou três drinques a bordo não será capaz de amputar a perna de alguém, pilotar um avião ou reger a missa em si menor de Bach, mas será imensamente mais competente para dar uma festa, admirar uma mulher bonita ou ouvir a missa em si menor de Bach. As coisas mais difíceis e úteis do mundo, como extratir dentes ou descascar batatas, ficam melhores quando feitas por pessoas tão sóbrias quando os condenados às vésperas da execução. Mas as coisas mais gostosas, inúteis e divertidas deveriam ficar a cargo daqueles já devidamente lubrificados. O Pithecanthropus erectus era abstêmio, mas os anjos sempre souberam o que lhes convinha às cinco da tarde.
Tudo isto é tão óbvio que me espanto ao ver que nenhum utópico, até hoje, se propôs a abolir todas as lamentações do mundo pelo simples artifício de manter toda a humanidade ligeiramente alta. Note bem, eu não disse bêbada; disse ligeiramente alta — e peço desculpas por não saber como descrever este estado numa frase menos indecorosa. O homem ligeiramente calibrado pelo álcool é capaz de pôr suas melhores qualidades para fora. Ele não é apenas imensamente mais amável do que o indivíduo que vive a seco; é também imensamente mais decente. Reage a todas as situações de maneira expansiva, generosa e humana. Torna-se mais liberal, tolerante e agradável. É melhor cidadão, marido, pai e amigo. As iniciativas que tornam a vida humana insegura e desconfortável nunca são tomadas por este homem: ele não declara guerras, não rouba nem oprime ninguém. Todas as grandes vilanias da História foram perpretadas por homens sóbrios e, principalmente, por abstêmios. Mas todas as coisas belas, do Cântico dos Cânticos à tartaruga à Maryland, das nove sinfonias de Beethoven ao martíni seco, foram concebidas por homens que, na hora certa, trocavam a água da bica por algo mais colorido e com outros ingredientes que não apenas hidrogênio e oxigênio.
Estou ciente, é claro, que manter toda a espécie humana neste paraíso, ano após ano, apresentaria formidáveis dificuldades técnicas. Seria difícil calcular a dosagem diária de cada indivíduo conforme exatamente suas necessidades particulares, e fazê-lo tomá-la precisamente na hora certa. Por um lado, haveria o constante perigo de que grandes minorias se tornassem ocasionalmente sóbrias e, com isso, começassem guerras, disputas ideológicas, reformas morais e outros aborrecimentos. Por outro lado, haveria o perigo de que outras minorias fossem levadas a uma real intoxicação e começassem a nos amolar com suas choraminguices xexelentas. Mas tais obstáculos técnicos não são, de forma alguma, insuperáveis. Talvez pudessem ser resolvidos abandonando-se a idéia da administração do álcool per ora e distribuindo-o mais democraticamente, apenas impregnando o ar com ele. (…)
Pode-se objetar que mesmo pequenas doses de álcool, se uma dose já estiver nos calcanhares da dose predecessora antes que os efeitos desta tenham desanuviado, poderiam ter um efeito deletério sobre a saúde física da espécie — que a taxa de mortalidade aumentaria e que categorias inteiras de seres humanos seriam exterminadas. A resposta é a de que não estou propondo aqui aumentar a longevidade de ninguém, mas aumentar seus prazeres. Suponhamos que a duração da vida seja reduzida em 20%. Minha resposta é a de que suas delícias crescerão em pelo menos 100 %. (…)
Que o homem civilizado médio de hoje é inferior ao civilizado médio de duas ou três gerações atrás é tão claro que dispensa explicações. Ele tem menos iniciativa e coragem; é menos criativo e heterogêneo; está mais para um coelho do que para um leão. Duras repressões tornaram-no o que ele é. Bem, ninguém com dois ou três drinques no fígado é um tirano. Poderá aparecer tolo, mas não cruel, talvez fique um pouco barulhento, mas será também tolerante, generoso e educado. Minha proposta restauraria o cristianismo no mundo. Salvaria a humanidade dos moralistas, dos pedantes e dos ferrabrases."
(H.L. Mencken, 1924 em ” O Livro dos Insultos de H.L. Mencken”).
Ergo uma Caracu a ele. E outra para o jornalista Ricardo Lombardi, do Desculpe a Poeira, de onde esse texto foi criminosamente furtado e atenuadamente creditado aqui.